Lágrimas na chuva.

Chovia e não tinha forma de ficar em casa. Era tudo que ele mais queria, um tempo em casa, um livro, um pouco de vinho, talvez. Curtir sua tristeza, beber de sua amargura. Sua tão recém solidão, e ao mesmo tempo, um mundo desmoronando sobre seus ombros de forma tão opressora e intensa.

A chuva encharcava sua roupa e fazia seu chapéu úmido e pesado com grossos cordões de água que escorriam pelos seus olhos. Ele se lembrava, enquanto lutava contra a chuva, de sua cama. Podia imaginar o lado dela ainda aquecido. Aquele calor espaçoso que por tantas e tantas noites sentirá a falta de seus incômodos, sofrimento antecipado da falta daqueles pés gelados em suas cotas.

Os papéis na pasta em que carregava, aquela maldita pasta, se tornavam uns, unidos pela argamassa da chuva encharcando a celulose. Túmulo, caixão, cemitério, flores, enterros. Como é caro morrer. Caro para os outros. E tão perdido estava, caminhando naquela manhã escura como a meia noite, chovendo como se fosse o fim do mundo, que nem notara a rua estranha, os becos desconhecidos, a ausência de outros seres humanos. Sua solidão projetada na rua? Mas ele caminhava, inexorável, insensível ao mundo alheio.

Eram cinquenta anos de casados e ele se lembrava, como ontem, dos passeios não feitos, as promessas sem cumprir, as viagens nunca feitas. Era tão gostoso sonhá-las, para que estragar com trânsito, com problemas, com malas? E depois, bem depois sempre havia um gasto novo, mais importante, sério e sóbrio a ser feito, que uma viagem. As flores têm que ser vermelhas. Sem coroas. Cremação. Aquele velho vestido que ela tanto gostava. Aqueles sapatos surrados, que ele queria ter lembrado de guardar, para que não fossem jogados fora ou doados. Lembranças presas em objetos.

Perdido entre pensamentos, ele andou, e andará, para sempre, sem saber que ele também, já deixou este plano. Preso pelas lembranças não cumpridas, ele vagará para sempre, atrás daqueles papéis sem solução debaixo de seus braços.

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